A chama imensa

Permitam-me uma deriva. É uma vez sem exemplo.

Sou, felizmente, dos que vão tendo memória. Lembro-me do completo desnorte que reinou no Benfica até há meia dúzia de anos. Lembro-me de um estádio decrépito e às moscas. Lembro-me das fornadas de contratações anunciadas, falhadas e descartadas que todos os anos desaguavam na Luz. Lembro-me dos negócios ruinosos. Lembro-me das invenções e reinvenções dos esquemas táticos, ao sabor das modas e dos treinadores que incompetentemente se sucediam. Lembro-me, sobretudo, de um futebol muito feio, falho de ideias, sem brilho, sem centelha e sem qualquer consistência. Lembro-me, e é o que mais me custa, de não ter nada para mostrar aos meus filhos. De não conseguir encantá-los, como eu tinha sido encantado, nos idos de 70 e 80, quando rumava, religiosamente, com um Zé que eu cá sei, para o velho Estádio da Luz. Logo ao princípio da tarde de todos os domingos da minha meninice.

É verdade que sofremos a bom sofrer. Um sofrimento daqueles valentes. Agudo, humilhante, desaustinado. É verdade que chorámos, abraçados, os três. É verdade que não vou esquecer nunca o Tomás a pedir-me, com uns olhos mudos de tão tristes, que lhe dissesse que aquele minuto mais sádico da história do futebol não estava a acontecer. Que o Mundo não estava a desabar, ali, sob os nossos pés. É verdade que o Manuel chegou a dizer-me, depois do desaire frente ao Chelsea, os olhos rasos de lágrimas, que "preferia que o tempo andasse para trás para eu nunca ter nascido". Tudo isso é verdade e ainda dói. Mas eu sei bem, e não esqueço, porque choravam os meus rapazes.

Choravam porque o futebol do Benfica se tinha transmutado, na era de Jesus. Choravam porque os deuses do futebol se tinham unido, naquele ano fatal, para tramar bem tramado o melhor Benfica desde Eusébio. Um Benfica de futebol mágico, alado, fluido, patinado. Um Benfica que bailava, ligeiro e ritmado, ora fuga, ora tocata, sob o perfume exótico de Enzo, Gaitan e Salvio. Um Benfica cerebral, pensado e construído à velocidade da Luz por um Matic que se diria inventado pelo próprio Diabo. Um Benfica de barba rija que é o da raça de Maxi. Um Benfica imperial e sereno, de Luisão e Garay. Um Benfica matador feito do samba de Lima e da frieza de canhão de Cardozo.

Eu sei tudo isto muito bem e não o esqueço. Jesus devolveu o Benfica aos meus rapazes. Apesar de todos os contratempos, de todos os desgostos, Jesus devolveu-lhes, cinco anos a fio, o supremo prazer de sofrer, com eletrizante alegria, pelo clube do seu coração. E a mim, escusado será dizê-lo, deu-me o prazer imenso de lhes ver sublimemente explicada, em cada uma daquelas noites longas de ballet tropical, toda a história da minha futebolística meninice. E eles, que são rapazes reconhecidos, responderam a preceito: equiparam-se na manhã seguinte a Amesterdão e foram para a escola, de águia ao peito, cheios de garbo.

Desculpem-me, uma vez mais, este inusitado desatino. Deu-me para isto depois de ouvir Jesus dizer, com compreensível mágoa, que nem sempre o coração da Luz o compreendia. Pois lá em casa, fica a saber com o que conta. No ano passado, fomos a aldeia gaulesa que aplaudiu a decisão corajosa do presidente Vieira. Este ano, e no ano que há de vir, também já decidimos. Torcemos pelo mesmo. Dê a coisa por onde der.

Pedro Norton, Crónica publicada na VISÃO 1102, de 16 de abril

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